Apresentação da SPAB

A Sociedade de Preservação do Àse Bámgbósé (Egbé Ìpamó Àse Bámgbósé Obítikó) foi fundada em 1996 e reconhecida como entidade de utilidade pública pelo Governo da Bahia em 2003.

Com sede nas dependências do Terreiro Pilão de Prata, bairro da Boca do Rio (Salvador/BA), a SPAB tem como objetivo zelar pela memória e pelo legado ancestral iniciado com a chegada ao Brasil do babalaô nigeriano Bámgbósé Obítikó, sacerdote de Xangô, cuja trajetória se confunde com a própria história de construção da identidade religiosa afrobrasileira a partir do século 19.

A SPAB preserva objetos históricos, promove eventos e encoraja estudos que contribuam para o fortalecimento dos laços ancestrais e a compreensão de nossas origens africanas, principalmente aqueles relacionados à memória religiosa, social e histórica da linhagem Bámgbósé.

Vida e Viagens de Bamboxê Obitikô

LISA EARL CASTILLO*

* Artigo originalmente publicado em:
CASTILLO, L .E. In: Jesus, A.J.S. & Junior, V.C.S. (orgs.). Minha Vida é Orixá. Salvador: Ifá Editora, 2011. p. 55-81.

Bamboxê Obitikô foi um dos homens mais destacados da história das religiões afro-brasileiras. Segundo a memória coletiva da Casa Branca, Bamboxê, também conhecido como Rodolfo Manoel Martins de Andrade, era babalaô e devoto de Xangô. Realizou ritos essenciais no estabelecimento do espaço físico do terreiro, contribuições sinalizadas hoje durante o padê, um ritual semiprivado realizado antes de todas as cerimônias públicas, em homenagem ao orixá Exu e aos homens mortais importantes nos primeiros tempos do terreiro. Nesse ritual, Bamboxê é saudado como Essa Obitikô.

Apesar de sua importância inegável no campo ritual, até agora a vida de Bamboxê Obitikô fora desse âmbito permanecia um mistério. 0 texto atual apresenta dados históricos obtidos através de pesquisa documental, cruzando-os com informações embutidas em narrativas orais. 0 resultado é um esboço preliminar da vida desse personagem singular, com os primeiros detalhes concretos sobre seu tempo no cativeiro, vida familiar e viagens a outras cidades do Brasil e a África. A pesquisa também trouxe informações preciosas sobre sua amizade com Joaquim Vieira da Silva, Obá Sanyá, outra ilustre figura masculina da rede religiosa da Casa Branca durante o século XIX. Através desses dois homens, a Casa Branca se inseria numa rede sociorreligiosa que ligava Salvador a Lagos e também se estendia até as províncias de Pernambuco e do Rio de Janeiro.

Primeiros anos no Brasil

Em uma das versões da memória oral sobre a fundação do terreiro, afirma-se que o babalaô chegou à Bahia como pessoa livre com Marcelina da Silva quando esta retornou de uma viagem à África. Uma variação da história sustenta que ele teria chegado como escravo, mas que foi Marcelina que pagou sua carta de alforria. Ainda outra, juntando elementos das duas primeiras, diz que Bamboxê foi escravizado, que sua senhora foi Marcelina e que o babalaô chegou da África com ela nessa condição. Apesar das diferenças, percebe-se que em todas as versões, Marcelina da Silva é representada como uma presença importante na vida de Bamboxê Obitikô, desde os primeiros tempos deste na Bahia.

A documentação histórica confirma que Bamboxê foi escravizado no Brasil, mas revela que Marcelina não foi sua senhora. 0 babalaô serviu a um português, Manoel Martins de Andrade, e foi batizado com o nome Rodolfo, provavelmente nos anos 1840. Andrade tinha uma pequena fazenda com árvores frutíferas na vila litorânea de Jaguaripe e possuía também propriedades na capital - um grande sobrado na rua do Tijolo, número 18, onde morava com sua família, e duas casas térreas na vizinhança, ambas na rua do Saboeiro. Quando morreu, em 1871, deixou dez escravos. Encontrei evidência de pelo menos treze outros que teve entre 1852 e 1861, entre eles dois Rodolfos, dos quais um foi o nosso Bamboxê Obitíkô.

A documentação indica que Manoel Martins de Andrade era um senhor intransigente e quando contrariado as consequências podiam ser brutais. Em setembro de 1852, o português recorreu à polícia para disciplinar Luis nagô, um jovem escravo com 24 anos de idade.

Num pedido dirigido ao chefe de polícia, o senhor explicou que seu escravo era desobediente e solicitou permissão para puni-lo com 400 açoites, sem relatar os pormenores do caso. A severidade do castigo foi excepcional, semelhante às punições sofridas por alguns insurgentes da revolta dos males. A polícia a considerou exagerada e autorizou "apenas" 150 chibatadas.

Não encontrei outras referências às relações de Manoel Martins de Andrade com seus cativos, mas com certeza a violência do castigo de Luis - bem como outras punições que não chegaram ao conhecimento da polícia - deve ter ficado gravada na memória de todos os cativos que viviam sob o domínio do português. Alguns anos depois desse incidente, Bamboxê conseguiu sua liberdade. Em 22 de maio de 1857, Andrade assinou uma carta conferindo a alforria "ao meu escravo Rodolfo, africano, pelo preço de 1:750$000 réis, que d'ele recebi ao assinar d'esta". O preço foi alto, porque Bamboxê, com cerca de 40 anos de idade, ainda era relativamente jovem, talvez mestre de algum ofício rentável. Preocupado que seu senhor renegasse o acordo, Bamboxê não perdeu tempo. No dia seguinte, registrou a carta em um tabelião.

Apesar de Bamboxê não ter sido escravo de Marcelina, é ainda possível que tivesse chegado com ela da África no mesmo navio, como as narrativas orais sustentam. Nesse caso, ela teria sido uma passageira livre e ele um dos presos no porão. Os navios negreiros também transportavam negros livres e libertos que viajavam por vontade própria. Porém, é pouco provável que Marcelina o trouxesse nessa condição. Ao longo de sua vida, foi senhora de mais de trinta escravos, mas não encontrei documentos que sugerissem que ela se envolvia no comércio negreiro. Entretanto, independente da veracidade das memórias orais de que Bamboxê chegou à Bahia no mesmo navio de Marcelina, é evidente que ela realmente estava envolvida de alguma forma na sua manumissão. No mesmo dia em que Bamboxê foi a um cartório para registrar sua carta de liberdade, Marcelina da Silva foi a outro tabelião, para registrar a venda de um escravo africano. O comprador era a Manoel Martins de Andrade, e o preço foi 850$000 réis - a metade do valor que Bamboxê tinha acabado de pagar por sua liberdade. O texto da escritura da venda não menciona a relação de Marcelina com o liberto Rodolfo, mas, considerando a data e o preço, parece claro que ela pretendia compensar o português pela perda dos serviços de Bamboxê, fornecendo-lhe outro cativo. Andrade saiu muito bem do negócio: um novo escravo e 900$000 réis a mais no bolso.

Provavelmente, a intervenção da ialorixá deixou Bamboxê com uma dívida ética e financeira, que, talvez, o obrigasse a servi-la durante um tempo para compensar o favor. Segundo o sistema iorubá de iwofa, quando alguém tomava um empréstimo, o devedor, ou um substituto arranjado por ele, tinha que servir ao credor por um determinado número de horas a cada semana. Não era escravidão: o serviço era limitado ao valor dos juros e acabava quando o pagamento da dívida terminava. Mas envolvia trabalho obrigatório realizado por alguém de uma posição socioeconômica inferior para outra pessoa mais privilegiada. Diante desse costume, a versão da tradição oral que mantém que Bamboxê era escravo de Marcelina pode ser interpretada como uma lembrança alegórica do envolvimento da ialorixá na alforria dele.

Uma vez liberto, Bamboxê acrescentou o nome completo do seu ex-senhor ao seu nome de batismo, tornando-se Rodolfo Manoel Martins de Andrade. Em pouquíssimo tempo passou a ser senhor de escravos. Em setembro de 1858, apenas um ano e meio após sua manumissão, comprou Pedro, um africano com cerca de 50 anos de idade. Provavelmente devido à idade do escravo, o preço foi baixo: 300$000 réis. Alguns anos depois, em 1864, Bamboxê comprou Cypriano, também africano e da mesma faixa etária, pelo mesmo preço. É possível que, nessas compras de mão-de-obra "de segunda", Bamboxê estivesse seguindo uma lógica que remetia ao universo religioso-cultural iorubá. Um dos versos de Ifá relembra que o primeiro cativo comprado pelo orixá Oxalá era aleijado. Inicialmente Oxalá se arrependeu dessa compra, mas acabou mudando de ideia, pois o escravo lhe trouxe riqueza e boa sorte.

Apenas dois anos depois de comprar Cypriano, Bamboxê o vendeu, talvez precisando de dinheiro líquido, pois tinha acabado de comprar uma casa. Era localizada na estrada de Pau Miúdo, uma pequena vila da periferia semirrural da freguesia de Santo Antônio além do Carmo. A escritura, datada de 28 de abril de 1866, observa que Bamboxê já residia na freguesia, e outros documentos sugerem que tinha fixado residência por lá desde 1861. A casa era humilde, com paredes de taipa, coberta por telhas. Tinha dois quartos, cozinha, sala e quintal. O terreno, foreiro à Quinta dos Lázaros, um dos hospitais da cidade, tinha nove braças de frente e trinta de fundo. A escritura nos informa que o comprador era pai: a propriedade foi registrada no nome de sua filha Júlia, de menor, "com a condição, porém, de poder ele comprador usufruir a dita casa durante sua vida". Esta Júlia, com certeza, era a filha conhecida na memória oral por Maria Júlia, que na sua vida adulta teria um filho, Felisberto, que também se tornará babalaô. A primeira vista, o fato de colocar a casa no nome dela parece indicar um carinho paternal especial. Mas há de lembrar também que, para africanos libertos que tinham a condição econômica de adquirir propriedade, era também uma maneira de contornar uma lei provincial que proibia africanos de comprar imóveis, implementada pelo governo provincial após a insurreição de escravos de 1835.

Depois deste documento, há uma lacuna de seis anos na documentação sobre o babalaô. 0 próximo registro que encontrei em seu nome é de 16 de março de 1872, quando ele pediu um passaporte para viajar a Pernambuco. Naquela época, passaportes eram necessários não apenas para viagens para fora do país, mas também para ir a outras províncias. Para um negro obter permissão para viajar, tinha que comprovar primeiro que não era escravo. No caso de negros nascidos livres, a certidão de batismo servia, mas no caso do ex-escravo, exigia-se a carta de alforria, original ou cópia autenticada por um tabelião. Para viagens subsequentes, bastava o passaporte vencido. Ao pedido de passaporte de Bamboxê está anexada a carta de alforria original: uma folha de papel desgastada, enrugada e um pouco suja, de quinze anos dobrada no bolso, sinalizando que era sua primeira saída da Bahia como liberto.

Obá Sanyá, "amigo inseparável" de Bamboxê

No dia 18 de março de 1872, a polícia recebeu outro pedido de passaporte para Pernambuco, de um africano liberto chamado Joaquim Vieira da Silva. Lembrado pela tradição oral como amigo inseparável de Bamboxê, "Tio" Joaquim foi também importante na história da Casa Branca. Outro devoto de Xangô, seu nome ritual era Obá Sanyá, o que significa "o rei se vinga de sofrimento". Hoje, é saudado durante a cerimônia do padê, pelo nome Essa Oburô. Conta-se que Tio Joaquim tinha um terreiro, próximo do então povoado do Rio Vermelho.

Na carta de liberdade de Joaquim, consta que era marinheiro. Seu senhor, Antônio Vieira da Silva, era um imigrante português que acumulou vasta fortuna durante o período ilegal do tráfico transa-tlântico de escravos. Quando não estava no alto-mar ou em um dos portos da Costa da África negociando a compra de cativos, Antônio Vieira da Silva morava em Salvador, freguesia de São Pedro, num luxuoso sobrado de dois andares localizado na rua Portão da Piedade. Quando morreu, em agosto de 1866, Antônio Vieira da Silva era proprietário de cerca de cinqüenta escravos, mais de trinta imóveis e 200 contos em dinheiro e letras. No seu testamento, Silva concedeu liberdade a mais de doze escravos, entre eles Joaquim e vários outros marinheiros. Nessa altura, Joaquim tinha 40 anos de idade.

Não está claro por quanto tempo Joaquim tinha sido cativo, mas parece provável que tenha sido escravizado na década de 1840, talvez vendido ao seu senhor por um dos atravessadores em Ouidah de quem Silva era cliente, como Antônio e Ignácio Félix de Souza, filhos do poderoso mercador de escravos Francisco Félix de Souza, o "Chachá". Diante do envolvimento do seu senhor no tráfico em seres humanos, podemos supor que Joaquim aprendeu o ofício de marinheiro em navios negreiros.

Embora a importação de escravos africanos para o Brasil tenha terminado efetivamente no final de 1850, a documentação sugere que o senhor de Joaquim demorou a fazer a transição para o comércio lícito. Com o fim do tráfico para o Brasil, ainda restava o mercado cubano. Numa carta ao seu sócio escrita em Ouidah em janeiro de 1854, Silva comentava que "nesta data já V.M. deve estar embolsado do dinheiro da Havana, "porque alguns aqui já o seu receberam", sem dúvida se referindo aos negócios cubanos de outros traficantes estabelecidos naquele porto. Contudo, os rendimentos do tráfico negreiro eram cada vez mais difíceis. No início dos anos de 1860 Antônio Vieira da Silva passou a trabalhar no tráfico interprovincial, levando escravos e outras mercadorias da Bahia para serem vendidos no sul. Infelizmente, apesar da ampla documentação sobre as atividades marítimas de Antônio Vieira da Silva, não constam os nomes dos tripulantes dos seus navios, o que nos deixa sem saber como o marinheiro Joaquim nagô figurava nos negócios de seu senhor. Porém, diante das viagens aos mais diversos portos do mundo Atlântico parece provável que Joaquim tenha ido a alguns desses lugares, inclusive ao continente do seu nascimento. Se não como tripulante nas embarcações do próprio Antônio Vieira da Silva, quiçá alugado ao mestre de outro navio.

Como já vimos a tradição oral do Candomblé diz que Joaquim e Bamboxê eram grandes amigos. Exatamente quando se conheceram não está claro, mas, em novembro de 1866, "Joaquim Antônio Vieira da Silva" aparece num livro de batismos da freguesia de Santo Antônio, como padrinho de uma criança recém-nascida. A madrinha, Maria do Carmo, morava no Pau Miúdo, perto de onde morava também Bamboxê. Podemos especular, então, que se Joaquim não conhecia Bamboxê antes deste período, poderiam ter-se conhecido por aí.

Na tradição oral, Bamboxê Obitikô e Joaquim Vieira da Silva são lembrados como atores importantes nos ritos de abertura do Ilê Iyá Nassô, antigamente conhecido como o Engenho Velho e hoje por outro apelido, a Casa Branca. Essa memória é útil para tentar estabelecer uma parte ainda elusiva da história do terreiro: a data da sua instalação no local atual, no Engenho Velho da Federação. Na época de Iyá Nassô, fundadora do terreiro, a comunidade religiosa funcionava no centro da cidade de Salvador, mas esse período, que talvez tenha começado no início dos anos 1820, provavelmente se encerrou em 1837, quando a fundadora juntou sua família, escravos e agregados - entre eles Marcelina da Silva - e viajou para a África. Ainda segundo a tradição oral, o terreiro se mudou algumas vezes antes de instalar-se no Engenho Velho.

É pouco provável que Bamboxê realizasse os ritos da inauguração do espaço sagrado nos tempos de Iyá Nassô, pois naquele período era criança ainda. Joaquim, por sua parte, nem sequer tinha nascido. Assim, deduzimos que a participação dos dois se deu posteriormente, durante os ritos realizados depois da mudança para o Engenho Velho, o que deve ter ocorrido entre a volta de Marcelina à Bahia em 1839 e sua morte em 1885. Infelizmente, em toda a extensa documentação histórica encontrada sobre Marcelina da Silva, não consta nenhuma propriedade no Engenho Velho. A primeira evidência da presença do terreiro no novo local vem apenas em 1892, dois anos após a morte de Maria Júlia Figueiredo, sucessora de Marcelina. Em junho daquele ano, a propriedade foi arrematada para pagar dívidas tributárias. Nessa altura já possuía edificações bem estruturadas.

Uma grande casa de taipa, coberta de telha, situada no lugar denominado Engenho Velho, estrada do Rio Vermelho, freguesia de Brotas, com 150 palmos de frente, 2 salas, 6 quartos, varanda ao lado, cozinha e mais cômodo que serve de dispensa; uma pequena casa de taipa, coberta de telha, da qual é rendeira Venância Maria dos Anjos, além desta ainda existe uma pequena casa de palha que está ao serviço da casa grande, todas edificadas em terreno arrendado e de propriedade do Dr. José Carneiro de Campos.

A "grande casa de taipa" é obviamente o barracão, enquanto a estrutura menor "a serviço da casa grande" talvez seja uma casa de santo. De qualquer forma, a presença de tanta infraestrutura sugere que a comunidade religiosa estivesse funcionando no local há alguns anos. Mas quantos?

Se Bamboxê participou dos preceitos para inaugurar o novo espaço no Engenho Velho, parece provável que tenha acontecido em algum momento depois da sua liberdade em 1857, quando teria mais autonomia para permanecer durante ritos prolongados. Lembremos também que o envolvimento de Marcelina da Silva na alforria de Bamboxê pode tê-lo deixado com uma dívida com ela. Se o babalaô a serviu como iwofa, a sua assessoria nos ritos para estabelecer o novo local do terreiro poderia ter sido um dos termos do acordo entre os dois. Por outro lado, Joaquim Vieira da Silva também é lembrado como participante na fundação do terreiro. Já que era marinheiro durante o cativeiro, deve ter passado muito tempo em viagens no alto-mar, o que teria dificultado seu envolvimento em rituais religiosas em Salvador. Sua alforria, obtida em 1866 por verba testamental do seu senhor, estipulou que servisse aos herdeiros durante três anos, e a carta de liberdade de Joaquim só foi emitida em setembro de 1870.

Se aceitarmos que a mudança provavelmente aconteceu depois de setembro de 1870, quando os dois já eram libertos, poderíamos ainda arriscar que teria ocorrido antes de março de 1872, quando foram juntos a Pernambuco. Porque essa viagem marcou, para Joaquim, o início de uma longa estada naquela província. Na vida do babalaô foi o começo de um período de viagens itinerantes que duraria mais de vinte e cinco anos, no qual atravessou o Atlântico várias vezes, como o fizeram outros parentes seus, tema da próxima seção.

Uma rede transatlântica

Depois da viagem a Pernambuco, em 1872, a próxima notícia de Bamboxê Obitikô e Joaquim Vieira da Silva vem de meados de 1873. Nos registros de passaportes emitidos na Bahia consta que, no dia 10 de junho, Rodolfo Manoel Martins de Andrade, "preto liberto com 50 anos de idade, de nação mina", pediu permissão para viajar à Costa da África, levando na sua companhia seus três filhos: Júlia, que tinha 17 anos, Lucrécia, com 13, e o pequeno Theóphilo, que tinha apenas sete. Essa viagem, provavelmente, foi a primeira volta de Bamboxê ao continente do seu nascimento. Durante a travessia marítima, ele também seria responsável por mais dois crioulos livres, menores de idade: Cosme, com 13 anos, e Rosalina, que, aos 18 anos, legalmente não tinha atingido ainda a maioridade. Os dois adolescentes tinham feito uma viagem de dois dias, de Recife, para se integrar ao grupo, provavelmente juntos com Feliciana Maria da Conceição, uma crioula de 24 anos que também chegara de Pernambuco para ir à África. Sem dúvida, a presença desses três pernambucanos no grupo estava relacionada à viagem recente de Bamboxê àquela província.

O grupo teve que esperar dois meses para viajar. No dia 7 de agosto, Bamboxê, seus filhos e os pernambucanos deixaram o Brasil a bordo do brigue Bemvindo. Dez dias depois, Joaquim Vieira da Silva viajou para Recife de novo, talvez levando as notícias de que a viagem transatlântica do grupo já tinha começado. Seja qual for o motivo de sua ida, Joaquim permaneceu na capital pernambucana durante muitos anos, como veremos mais adiante.

Oito meses antes, outro africano liberto, Eduardo Américo de Souza, também tinha deixado a Bahia para ir à África. Eduardo Américo também figura na memória oral, pelo seu casamento com Júlia, filha de Bamboxê, com quem teve um filho, o já aludido babalâo Felisberto Sowzer. Na sua viagem, Eduardo Américo também levou algumas crianças para Lagos. Uma foi Sophia, uma adolescente de 15 anos, cuja mãe, Esperança Ritta Pereira, era africana liberta e morava na freguesia da Rua do Passo. Outra integrante do grupo de Eduardo Américo foi um menina crioula de doze anos de idade, chamada Querina. Diferente de Sophia, que nasceu livre, Querina tinha passado toda sua vida até então no cativeiro. Quando Querina nasceu, sua mãe, a africana liberta Justa, era escrava de Marcelina da Silva, sucessora de Iyá Nassô na liderança da Casa Branca. Em maio de 1872, Justa, já liberta, pagou 900$000 réis a sua senhora pela liberdade de Querina, provavelmente já pensando na viagem à África então sendo organizado por Bamboxê e Eduardo Américo. Para poder enviar a menina com o grupo, tinha que resgatá-la primeiro do cativeiro. Pelos vínculos de Justa e sua filha com a Casa Branca, percebe-se que Eduardo Américo provavelmente também frequentava a comunidade religiosa.

Como Bamboxê, Eduardo foi descrito como "mina" no seu passaporte. No cativeiro, serviu ao advogado Américo de Souza Gomes, que residia na freguesia de Santa Anna e ocupou vários cargos importantes no governo provincial. Não é claro quando Eduardo se tornou escravo desse senhor, mas comprou sua liberdade em 15 de dezembro de 1860, pagando 1:550$000 réis. Depois disso, os próximos registros em seu nome são de 1865, quando Eduardo também passou a ser proprietário de escravos, comprando duas mulheres africanas. Três anos depois, em abril de 1868, Eduardo foi um dos vinte africanos e crioulos que pediram passaportes para a Costa da África. Não há indícios de que embarcação o grupo pretendia pegar, mas logo depois de receber o passaporte, Eduardo vendeu uma de suas escravas, provavelmente para custear as despesas da viagem. Ele tinha então 35 anos.

Dessa vez, Eduardo Américo permaneceu na África por quatro anos, provavelmente em Lagos, que tinha sido ocupada pelos ingleses em dezembro de 1851, posteriormente atraindo cada vez mais africanos libertos do Brasil. Quando Eduardo voltou à Bahia, em 19 de julho de 1872, já portava um passaporte inglês. Poucas semanas depois, viajou para Pernambuco aonde, como vimos, Bamboxê e Joaquim tinham ido há quatro meses. Quando Eduardo retornou novamente à Bahia, em 12 de setembro do mesmo ano, trouxe três crianças que também pretendia levar a Lagos: dois meninos chamados Carlos, um de oito anos de idade e o outro de dez, e uma menina, Francisca, também com dez anos.

Obviamente, as idas paralelas de Bamboxê e seu futuro genro a África, cada um levando um grupo de crianças, algumas das quais eram pernambucanas, eram ligadas. Seguramente, durante os quatro anos que já tinha passado em Lagos, Eduardo adquiriu contatos que foram úteis na sua volta posterior com as crianças. Esses contatos possivelmente forneceram hospedagem e outras formas de assistência aos recém-chegados. Nesse aspecto, Bamboxê talvez dependesse dele, pois o babalaô tinha passado longos anos no Brasil sem retorno ao continente negro. Mas Bamboxê, por sua parte, deve ter trazido à parceria contatos da sua rede sócio religiosa no Brasil. Quando Bamboxê e Joaquim viajaram a Pernambuco, em março de 1872, Eduardo ainda estava na África. Não é claro se a ida de Eduardo àquela província, alguns meses depois, foi ao encontro dos outros dois, mas, com certeza, Eduardo dependia do trabalho de organização e divulgação já feito no Recife por Bamboxê e Joaquim. Também não é claro como estes dois se comunicavam com Eduardo antes de sua volta da África. Provavelmente, recorreram a outros viajantes do seu círculo social para levar mensagens verbais ou cartas redigidas por outrem.

De qualquer forma, a superação das dificuldades impostas pela separação geográfica requereu muita articulação, o que sugere que os três homens participavam de uma rede de solidariedade sócio religiosa baseada na Bahia, que ajudava libertos em outras partes do Brasil a retomar contato com a África, para voltar a viver por lá e, talvez, até reconstruir laços de família e amizade despedaçados pela escravidão. Já que Bamboxê, Joaquim e, provavelmente, Eduardo eram ligados à Casa Branca, podemos supor que Marcelina da Silva, que quarenta anos antes também tinha feito uma viagem ao continente africano, teria consciência dessa rede e oferecia seu apoio, tácito ou ativo. Na sua ida a África em 1837, Marcelina também levou sua filha, Maria Magdalena, então com cerca de oito anos de idade. A menina permaneceu na África por mais vinte anos, provavelmente com Iyá Nassô.

Nos anos que se seguiram a ocupação de Lagos pelos britânicos, azeite de dendê, então muito usado como lubrificante industrial e combustível, substituiu escravos como o mais importante produto de exportação da cidade. A subsequente prosperidade econômica atraiu libertos do Brasil, que foram acolhidos pelo governo colonial. 53 Alguns, como Eduardo Américo de Souza, tinham conquistado a liberdade há relativamente pouco tempo quando atravessaram o mar rumo a Onim, como a cidade era então conhecida no Brasil. Outros tinham ficado na Bahia, como libertos por décadas, tomando a decisão de voltar só alguns anos após a instalação dos ingleses. Os imigrantes foram aproveitar as oportunidades de trabalho que estavam surgindo naquela cidade para pedreiros, marceneiros, sapateiros, etc. As famílias que enviaram seus filhos masculinos, com Eduardo Américo e Bamboxê, no início dos anos de 1870, provavelmente queriam que se tornassem aprendizes de um desses ofícios lucrativos. Talvez também pensassem nos terrenos sendo distribuídos a imigrantes através de um programa iniciado pelo obá Dosomu. Havia também a possibilidade de se matricular numa escola, como no caso do conhecido babalaô Martiniano do Bonfim, levado a Lagos por seu pai, Eliseu do Bonfim, em 1875. Martiniano estudou numa escola missionária até a quarta série, tornando-se letrado em iorubá e inglês. Ficou em Lagos por onze anos, e durante esse período trabalhou como pedreiro, inclusive na construção da catedral católica da cidade, a Holy Cross. Desde sua infância, Martiniano era vinculado à Casa Branca, através do seu pai, que era compadre de Marcelina da Silva e amigo de Bamboxê Obitikô, e parece provável que no seu tempo em Lagos, Martiniano estava em contato com o babalaô e seus filhos. Possivelmente, fosse com Bamboxê que Martiniano foi iniciado no culto de lfá.

Uma vez em Lagos, Bamboxê Obitikô, Eduardo Américo de Souza e seus grupos se integraram na ainda pequena comunidade de imigrantes brasileiros, ou aguda, como são conhecidos em iorubá, que já incluía cerca de mil pessoas, numa cidade cuja população total não ultrapassava de 25,000. Como bem aponta o antropólogo Milton Guran, a construção da identidade étnica dos aguda envolveu uma complexa mistura de elementos culturais africanos e brasileiros, com o catolicismo formando uma pedra fundamental. Nesse sentido, Bamboxê e Eduardo, apesar de permanecerem culturalmente iorubá na sua devoção ao culto aos orixás, também mantiveram um envolvimento seletivo com o catolicismo. Após sua chegada em Lagos, ambos tiveram vários filhos ao longo dos anos e os levavam para batizar. Contudo, na constituição de suas famílias, seguiram as normas da cultura iorubá. Seus filhos foram havidos de diversas mulheres, não de relações subsequentes, mas concorrentes. Não há dúvida: eram polígamos.

Nesse período, havia certa precariedade nas condições básicas do cotidiano de Lagos. Guerras civis tinham se espalhado pelo interior do território iorubá, o que tornava perigoso viajar na região. Mesmo dentro da cidade, a vida também tinha seus perigos. Incêndios era um problema recorrente, devido ao uso de palha nos tetos das casas. Em 1873, no intervalo entre as chegadas dos grupos de Eduardo e de Bamboxê, um grande incêndio destruiu quinhentas casas no bairro brasileiro. Esse cenário se repetiu várias vezes até o final do século. Epidemias de gripe, cólera, febre amarela e malária também eram comuns. Em 1895, a preocupação sobre o número de pessoas que morriam em epidemias motivou uma grande reunião, envolvendo o príncipe iorubá e todos os chefes e mais velhos locais. Entre as possíveis causas da epidemia, consideraram que a feitiçaria fosse a mais provável, e a reunião terminou com uma ordem aos chefes dos adeptos de "Shopono" (Obaluaiyê) que identificassem e punissem os responsáveis entre os devotos desse orixá.

Por outro lado, apesar desses perigos, também havia vantagens em termos da liberdade de religião. Os cultos aos orixás ainda predominavam na colônia, apesar dos esforços constantes de grupos missionários, e podia cultuar as divindades tradicionais publicamente. Em abril de 1875, por exemplo, realizou-se os ritos fúnebres de axexê, em homenagem aos 28 anos da morte da mãe do rei Dosomu, com uma grande procissão de 400 egunguns (Babá Egun) que circularam publicamente pelas ruas.

Num texto pioneiro sobre os retornados do Brasil em Lagos durante o século XIX, A.B. Laotan faz uma relação dos antigos moradores, na qual o babalaô aparece identificado como "Papae Bamgbósé No. 2 (Senhor Martins)". Laotan assinala que, nesse período, havia outro imigrante brasileiro também chamado Bamgbósé. Nos anos 1850, quando o nosso Bamboxê Obitikô era ainda escravo, o outro já residia em Lagos, mas foi expulso pelos ingleses, acusado de envolver-se numa conspiração contra o poder colonial. Alguns anos depois, foi permitido retornar. Tudo indica que foi esse primeiro Bamgbósé, que Laotan chama de "Papae Bamgbósé No. 1", que deu nome a rua Bamgbósé, pois a rua foi batizada por volta de 1868, cinco anos antes do retorno do babalaô Bamboxê Obitikô à África. Uma vez em Lagos, o babalaô, seja por coincidência ou por desígnio, fixou residência naquela rua, hoje em dia uma das vias principais do bairro brasileiro. Sua casa existe até hoje e lá ainda moram descendentes seus. Os orixás cultuados pela família são Exu, Xangô, Ogum e Oxum, e também cultua-se os egunguns dos seus ancestrais, entre eles Labo Ajankoro Dugbe Dugbe, o patriarca da família que veio do Brasil - ou seja, Bamboxê Obitikô.

Apenas três meses depois de sua chegada em Lagos, Bamboxê Obitikô se tornou pai de novo. A menina, Justina Maria, foi a primeira de sete filhos nascidos em solo africano ao longo de duas décadas (Tabela 1). A vida dela começou no Brasil e a menina atravessou o Atlântico ainda no ventre da mãe. Nos registros católicos do seu batismo, realizldo em 1 de dezembro de 1873, o nome da mãe aparece como "Firmina" da Conceição. Desconfio, porém, que o escrivão tenha erra Io e o prenome da mãe, na verdade, era Feliciana - a crioula liberta que veio de Pernambuco para viajar a África com Bamboxê. Se for o caso, quando ela foi a policia baiana com Bamboxê em junho daquele ano, para solicitar seu passaporte à África, já tinha cerca de 4 meses de gravidez. Bamboxê também casou com a outra pernambucana do grupo que atravessou o mar no seu grupo, Rosalina. No final de 1875, nasceu Andreas, filho do babalaô com ela. Quando foi batizado, em janeiro de 1876, o padrinho foi Eduardo Américo de Souza. No mesmo dia, Bamboxê batizou outro filho, Balbino, nascido há apenas quinze dias, havido com ainda outra mulher, Philomena da Conceição.

Os filhos brasileiros do babalaô também constituíram famílias em Lagos. Como foi assinalado acima, a mais velha, Maria Júlia, casou com Eduardo Américo de Souza. Aparentemente, o matrimônio foi realizado pelos ritos iorubás, pois os nomes de Maria Júlia e seu marido não constam nos registros de casamentos católicos realizados nessa época. Podemos supor, entretanto, que a união data 1876, pois seu filho, Felisberto, nasceu em julho de 1877. Foi batizado aos oito meses de idade, em 10 de fevereiro de 1878, com Antônio Alexander e Francisca Antonia de Castro como padrinhos. A julgar pelos nomes lusófonos, faziam parte da comunidade de imigrantes "brasileiros" em Lagos. Segundo a tradição oral, Júlia teve outro filho com Eduardo, mas não encontrei registro. Contudo, Eduardo Américo de Souza teve mais doze filhos, havidos de cinco outras mulheres. Uma dessas outras esposas foi Querina, a ex-escrava de Marcelina da Silva que foi a Lagos com ele, no final de 1872. Provavelmente, as futuras co-esposas Maria Júlia e Querina se conheciam desde a infância, na casa da ialorixá da Casa Branca.

Tudo indica que Felisberto foi o primeiro neto do babalaô. Logo depois do batizado do menino, Bamboxê voltou à Bahia, deixando sua família estendida em Lagos. Chegou a Salvador em 26 de setembro de 1878, no patacho Garibaldi, junto com 21 outros passageiros, entre eles Eliseu do Bonfim, o pai de Martiniano do Bonfim, que tinha passado um tempo em Lagos por negócios. O babalaô ficou no Brasil por apenas um ano, embarcando de novo para Lagos no dia 16 de setembro de 1879, no patacho Hester.66 No início de 1882, nasceu outra filha sua em Lagos, Josepha, que foi batizada com menos de uma semana de nascida. Consta no registro que a mãe se chamava Orisabukola. A ausência de um nome católico indica que ela ainda não tinha passado pelos ritos de batismo católico, pelo qual deduzimos que, diferente das outras mulheres do babalaô, nunca morou no Brasil.

Depois do batismo de Josepha, Bamboxê some dos registros de ambos os lados do mar por alguns anos. Reencontramos ele no Brasil em 8 de fevereiro de 1886, quando seu nome consta numa lista de passageiros chegando a Salvador do Recife. Marcelina da Silva tinha falecido em junho de 1885, o que talvez motivasse a volta do babalaô à Bahia, deixando sua mulher Feliciana grávida em Lagos.68 Não é claro porque Bamboxê foi a Pernambuco antes de vir a Salvador. Talvez não encontrasse um navio que embarcasse para Bahia e foi a Pernambuco por isso, onde pegou outro, rumo à capital baiana. De qualquer maneira, pouco mais de um mês depois de sua chegada à Salvador, o babalaô viajou para o Rio de Janeiro, retornando à capital baiana apenas em janeiro do ano seguinte.

Uma terceira ida a Lagos, que durou vários anos, começou em 20 de outubro de 1887. 0 ano seguinte, quando a abolição da escravidão se concretizou no Brasil, em 13 de maio, Bamboxê estava ainda em Lagos e, provavelmente, participou das grandes festividades comemorativas que ocorreram no bairro brasileiro da cidade alguns meses depois, lembrado como o “Jubilee Àguda”. Em 1890, Bamboxê Obitikô tornou-se avô de novo, com o nascimento de João, primogênito do seu filho Theóphilo. O menino foi batizado em 27 de junho de 1890, com o avô paterno como padrinho. Em 1895, nasceu outro filho de Theóphilo e, no mesmo ano, o próprio Bamboxê, já com cerca de 70 anos de idade, também voltou a ser pai, com o nascimento de outra filha de Orisabukula, Rosa. "A menina era ainda muito pequena, de colo, quando seu pai voltou ao Brasil, pois em 13 de maio de 1896, Rodolpho Martins chegou em Salvador de novo, vindo, mais uma vez, via Recife. Certamente, durante sua estada em Pernambuco, reencontrou com seu velho amigo Obá Sanyá, que ainda morava lá, já casado e com filhos, como veremos.

Não encontrei registros de outras viagens de Bamboxê, mas aparentemente regressou a Lagos logo em seguida, pois em agosto de 1896, os correios de Lagos anunciaram a chegada de uma carta, talvez do Brasil, endereçada a "R. Manoel Martin". Em 27 de junho de 1897, ainda em Lagos, Bamboxê Obitikô batizou sua última filha, Marcolina. No dia do batismo, faltavam dois dias para o décimo primeiro aniversário da morte de Marcelina da Silva, o que leva a pensar que a semelhança entre o nome de batismo da menina e o da falecida ialorixá não seja mera coincidência. 0 último registro que diz respeito ao babalaô vem alguns meses depois, quando outra carta endereçada a ele chegou aos correios de Lagos. Sabe-se, entretanto, que Bamboxê Obitikô ainda voltou ao Brasil, porque faleceu em Salvador; segundo a memória familiar, por volta de 1907. Seu túmulo se encontra na capela mor da Igreja do Rosário dos Pretos do Pelourinho, um dos poucos posteriores à virada do século XX, o que sinaliza o enorme prestígio que o velho babalaô tinha entre a população negra da Bahia.

Tudo indica que dois dos filhos que Bamboxê teve no Brasil, Lucrécia e Theóphilo, permaneceram em Lagos pelo resto de suas vidas. Mas Maria Júlia puxou seu pai e vivia entre os dois continentes. Não acompanhava o babalaô nas suas viagens marítimas, mas ao menos uma vez, fez-se acompanhar por sua co-esposa, Querina. Saíram de Lagos em fevereiro de 1896, no patacho Alliança, com mais de cinquenta passageiros, chegando ao porto da Bahia no dia 5 de abril. Querina levou duas das filhas que teve com Eduardo Américo: Joanna, já com dezenove anos, e Theodora, que tinha catorze. Maria Júlia, contudo, viajou sem seu filho Felisberto, talvez o tenha deixando em Lagos. Já tinha levado ele à Bahia numa viagem anterior, em 1886, quando mãe e filho chegaram no dia 20 de setembro, a bordo da escuna Zizi. Não é claro se a viagem de 1896 fosse a última vez que Maria Júlia Martins de Andrade atravessou o oceano, mas se sabe que, apesar de viver em Lagos por muitos anos, ela terminou sua vida na Bahia. Quando morreu, em 18 de fevereiro de 1925, já estava estabelecida em Salvador há décadas.

A neta caçula de Maria Júlia, D. Irene Sowzer Santos, hoje com noventa anos de idade, conta que seus avôs atravessaram o Atlântico muitas vezes, nem sempre junto. Os registros das viagens de Maria Júlia em 1886 e 1896 confirmam que ela viajava sem o marido, e há também indícios de uma viagem feita por Eduardo Américo à Bahia em 1881, sem suas esposas. Salvador foi sua base, mas passou a maior parte do tempo viajando a outras províncias: Rio de Janeiro em junho, Pernambuco em agosto e Maceió em outubro. Depois disso, há uma lacuna de quase um ano na documentação, até 20 de junho de 1882, quando o encontramos saindo da Bahia para Lagos, a bordo do palhabote Africano. Para Eduardo Américo, essa viagem de volta à África foi a terceira e, provavelmente, a última. Não há evidência que sugere outras idas ao Brasil; pelo contrário, entre 1883 e 1887, nasceram cinco filhos seus, todos em Lagos. Em algum momento, Eduardo passou a trabalhar a terra. Quando morreu, em Lagos, em 14 de março de 1897, foi descrito como agricultor, com uma roça na rua Tokonboh, próxima à rua Bangbose.

Viagens interprovinciais

As narrativas orais do povo-de-santo afirmam que Bamboxê Obitikô e Obá Sanyá viajavam ao Rio de Janeiro e a Pernambuco para assessorar comunidades religiosas na realização de rituais importantes. Conta-se que Bamboxê esteve envolvido na fundação do terreiro mais antigo de Recife, o Ilê Obagunté, ou o Sítio de Pai Adão, como é mais conhecido. A documentação apoia essas memórias, revelando que Bamboxê fez pelo menos quatro viagens a Pernambuco. Contudo, a tradição oral pernambucana coloca a fundação do terreiro em 1875, período em que Bamboxê estava na África. É bem possível que ele tenha participado de algum tipo de ritual preliminar durante sua visita a Recife em 1872, quando ele e Joaquim estavam organizando a primeira viagem a Lagos. Também pode ser que o babalaô estivesse presente em cerimônias que aconteceram durante suas viagens posteriores a essa cidade. Esta rede sócio religiosa entre Bahia e Pernambuco, da qual Bamboxê e Joaquim provavelmente foram os arquitetos principais, persistiu até as primeiras décadas do século XX, via Martiniano do Bonfim, que mantinha uma forte amizade com Pai Adão, o segundo líder do terreiro. Este, por sua vez, teria feito uma viagem a Lagos em algum momento também, mas não é claro quando.

Uma neta de Joaquim Vieira da Silva, Cantulina Pacheco, que faleceu em 2004 com 104 anos de idade, contava que seu avô "era de Pernambuco" - isto é, lá morava durante o cativeiro - e casou-se com "uma crioula de Recife", vindo à Bahia bem depois, por causa de sua amizade com Bamboxê. Como já vimos, entretanto, o senhor de Joaquim dividia seu tempo entre a Bahia e Ouidah, e a primeira vez que Obá Sanyá saiu da Bahia como liberto foi em 1872.

Por outro lado, seu trabalho de marinheiro o levava aos diversos portos e é provável que a capital pernambucana fosse um deles. Seja como for, os registros eclesiásticos da Freguesia de São José do Recife revelam que Joaquim Vieira da Silva, africano liberto, se casou na mesma freguesia com a crioula Isadora Maria da Conceição em 31 de janeiro de 1880. Consta que os nubentes eram residentes da freguesia e que Isadora era natural da Bahia. Em pouco tempo, foram chegando os filhos: Felismina, em 1881, Francisco, em 1882, Alfredo, em 1884, e, depois de um intervalo de nove anos, Raymundo, nascido em 1893.

Quando Obá Sanyá se casou, já morava em Pernambuco há vários anos. Em agosto de 1877, fez parte de um grupo de africanos que enviaram um abaixo assinado ao jornal Diário de Pernambuco, reivindicando o direito de livremente praticar sua religião. Este grau de integração nas articulações políticas da comunidade africana local sugere que Joaquim já residia na cidade há tempo, e há indícios de que continuou lá por volta de duas décadas. Depois de sua saída da Bahia rumo a Recife em agosto de 1873, não encontrei mais sugestões de sua presença em Salvador até 1896, quando, no dia 14 de setembro, chegou a bordo do vapor Brazil. O navio começou sua viagem em Manaus, fazendo várias escalas ao longo do litoral, e Joaquim embarcou do Recife. Como já vimos, Cantulina sustentava que Bamboxê influenciou a decisão de Obá Sanyá de se mudar para a Bahia, e o babalaô esteve em Pernambuco na primeira metade de 1896, poucos meses antes da vinda de Joaquim a Salvador, o que certamente apoia essa memória.

Seja o que for, em 1900 encontramos evidência definitiva que Joaquim e sua esposa já moravam na capital baiana. Na escritura da compra de uma grande propriedade com sete casas e um terreno baldio no bairro de Nazaré, o casal foi descrito como "proprietários, domiciliados nesta capital". As casas foram localizadas na Ladeira da Fonte das Pedras, não muito longe do distrito de Matatu, onde Bamboxê já morava. Em 1902, quando Joaquim morreu, entre seus bens também havia outra propriedade imóvel, uma pequena roça no bairro de Santa Cruz, próxima ao povoado do Rio Vermelho.

As várias versões da tradição oral concordam que, em 1886 Bamboxê Obitikô e Obá Sanyá participaram na fundação de um dos terreiros mais antigos do Rio de Janeiro, o Ilê Axé Opô Afonjá. Uma versão sustenta que também estava envolvida uma jovem adepta de Xangô chamada Eugenia Anna dos Santos, crioula de pais africanos e filha de santo de Bamboxê. Outra versão conta que apenas Bamboxê e Joaquim realizaram os rituais da fundação do templo, mas que Aninha, como era apelidada, veio ao Rio posteriormente e daí passou a liderar o terreiro. A documentação apoia a ideia de que Bamboxê estava presente durante a fundação do templo. O babalaô viajou pelo menos duas vezes ao Rio de Janeiro, passando dois meses em 1879 e quase um ano em 1886, como vimos acima. Mas Eugenia Anna dos Santos, que residia na Bahia, não aparece nas listas de passageiros dessas viagens, nem em qualquer outra durante a década de 1880, um ponto a favor da segunda versão da história. 87 Por outro lado, Joaquim Vieira da Silva, presente em ambas as versões, também não consta nas listas de passageiros de Salvador. Mas, como morava em Recife nessa altura, ele provavelmente teria começado sua viagem daquela cidade.

Qualquer que seja a verdade sobre a participação de Bamboxê Obitikô e Obá Sanyá na fundação do Ilê Axé Opô Afonjá no Rio de Janeiro, ambos são atores importantes nas narrativas orais de eventos que antecederam a fundação do terreiro do mesmo nome na Bahia. É dito que, depois da morte de Marcelina da Silva em 1885 surgiram divergências acirradas na Casa Branca sobre a escolha da próxima ialorixá, e que voltaram à cena em 1890, com a morte da sua sucessora, Maria Júlia Figueiredo. Segundo Edison Carneiro, essas rivalidades reapareceram novamente depois da morte de Ursulina. Nessa altura, segundo Carneiro, Joaquim teria sido candidato para a sucessão. Derrotado, Joaquim teria se afastado do Engenho Velho, formando sua própria comunidade religiosa - segundo alguns, no bairro de Santa Cruz, o que está de perfeito acordo com a localização da "roça" mencionada no inventário citado acima.

Porém, os documentos mostram que a fundação do terreiro de Obá Sanyá não podia ter acontecido depois da morte de Iyá Ursulina, porque ela faleceu por volta de 1920, mais de quinze anos depois de Joaquim. Se realmente houve algum racha envolvendo ele, só podia ter sido a que surgiu após a morte de Maria Júlia de Figueiredo em 1890. Seja o que for as várias versões concordam que Bamboxê e Aninha se aliaram ao terreiro de Joaquim em função das dissidências da Casa Branca. Obá Sanyá faleceu em 1902, seguido alguns anos depois por Bamboxê. Em 19 de janeiro de 1909, Aninha comprou um grande terreno no distrito rural de São Gonçalo, inaugurando um terreiro no ano seguinte. 0 nome escolhido foi Ilê Axé Opô Áfonjá, em homenagem à qualidade do seu Xangô, Afonjá.

Na formação de sua comunidade religiosa, certamente seus vínculos com Joaquim e Bamboxê ajudaram Aninha a atrair filhos de santo. No terreiro de Joaquim, Aninha já iniciava iaôs. Depois da morte de Bamboxê, uma das primeiras filhas de Aninha foi a bisneta de Marcelina da Silva, Maria Bibiana do Espírito Santo, hoje mais conhecida pelo apelido de Senhora. Senhora já tinha uma relação de amizade com a ialorixá há anos. Nascida em 1890, ficou órfã da mãe, Claudiana, neta de Marcelina da Silva, em 1900, e do pai, Félix José do Espírito Santo, dois anos depois. As duas tias maternas de Senhora faleceram em 1904 e 1906. Nesse período difícil, a futura fundadora do OpôAfonjá ajudou Senhora e seus quatro irmãos com a organização dos funerais católicos e, talvez, também dos ritos de axêxê. Quando, em 1938, Aninha veio a falecer, Senhora era iakeke-rê (mãe pequena) do Opô Afonjá da Bahia, tornando-se ialorixá do terreiro em 1942.

Além dos descendentes de Marcelina da Silva, outros membros da ICasa Branca também deixaram o terreiro para se integrar à nova comunidade liderada por Aninha, entre eles o babalaô Martiniano no Bonfim e um jovem ogã chamado Miguel Santana. Alguns anos mais adiante, em 1937, Cantulina Pacheco, a neta de Joaquim Vieira da Silva mencionada acima, seria uma das últimas iaôs de Aninha, iniciada poucos meses antes da morte da ialorixá.

Outro fator que contribuiu para o crescente prestígio do Ilê Axé Opô Afonjá nos seus primeiros anos foi o vínculo entre Aninha e a família Pimentel, da vila de Itaparica, localizada na ilha do mesmo nome na Baía de Todos os Santos. O patriarca da família, um liberto nagô consagrado a Xangô Aganju, Marcos Theodoro Pimentel, era adepto Ido culto iorubá aos ancestrais, no Brasil conhecido como Babá Egun. Marcos Theodoro tinha dois filhos, Marcos Cardoso Pimentel e José Theodoro Pimentel. Em maio de 1881, o jovem Marcos via ou a Lagos com seu pai, retornando em novembro do mesmo ano. É dito que trouxeram da África um assento de Babá Olukotun, legendário ancestral dos povos iorubás, cultuado até hoje nos terreiros de Babá Egun da Bahia. 0 velho Marcos morreu poucos anos depois. Na primeira década do século XX, após a morte de Bamboxê, José Theodoro Pimentel passou a assessorar Aninha, assumindo o cargo de Bale Xangô, chefe da casa de Xangô. Em 1921, sua filha carnal, Ondina Valéria Pimentel, foi iniciada por Aninha e, quatro décadas depois, em 1968, foi escolhida como sucessora de Mãe Senhora na liderança do terreiro.

Não é certo como Aninha conheceu essa família, que morava relativamente longe de Salvador. Parece provável, no entanto, que o velho Marcos e seu filho homônimo, durante sua estada em Lagos, tenham feito parte da rede sócio religiosa de devotos de Xangô no bairro brasileiro. Nesse âmbito, poderiam ter conhecido Bamboxê Obitikô e Martiniano do Bonfim, e, de volta ao Brasil, através deles, Aninha. De todo modo, é evidente que o apoio de famílias tão respeitadas por seu zelo religioso e também por seus vínculos com a África ajudou a impulsionar o terreiro de Aninha para uma posição de proeminência no universo religioso afro-brasileiro, lugar que ocupa até hoje em dia.

Conclusão

Os dados históricos apresentados neste texto, interpretados sob a luz de narrativas orais, fornecem informações preciosas sobre as trajetórias de vida de dois ilustres personagens masculinas na história das religiões afro-brasileiras. Tanto Bamboxê Obitikô quanto seu amigo "inseparável" Obá Sanyá eram atores importantes na organização de comunidades religiosas em diversos estados brasileiros e nas articulações desses terreiros entre si. Como Júlio Braga aponta, no seu texto incluído no presente volume, o grande interesse acadêmico nas contribuições das mulheres acabou obscurecendo a participação real dos homens no candomblé. Não é que as mulheres não tenham realizado papéis importantes, mas, como Braga e também J. Lorand Matory defendam, a cidade é longe de ser apenas delas, contrário à tese defendida por Ruth Landes no seu trabalho clássico sobre o candomblé da Bahia. Os novos dados sobre a vida de Bamboxê Obitikô aqui apresentados também demonstram claramente que os chamados "mitos" de viagens de volta à África são de dimensões míticas apenas no sentido de sua imensa importância para o imaginário afro-brasileiro, mas não são mitos no sentido de serem invenções. Alem de terem acontecido de verdade, as viagens foram muitos e frequentes, um dos grandes legados da herança africana no Brasil.


Sistema Divinatório Bamboxê

Prof. Dr. JULIO BRAGA
Professor Tílular da Univerdade Estadual de Feira de Santana

Circulou durante grande período do século XX, entre mãos cuidadosas de líderes religiosos do candomblé, precioso documento ao qual denominei de seminal e sobre o qual tracei breve biografia não autorizada, dando conta, essencialmente, de sua trajetória no interior da comunidade religiosa afro-brasileira. Circulação, aliás, restrita a um pequeno número de pessoas que pela notoriedade e poder religioso tiveram acesso a um texto "sagrado" sobre a prática divinatória com os búzios e, por isto, considerado como "caderno de fundamento" . Esses assim chamados "cadernos de fundamento" preservam, através da escrita, segmentos de andamentos litúrgicos, considerados segredos religiosos aos quais têm acesso apenas pessoas que se submeteram à rígidos rituais de iniciação e, assim, adquiriram pela via da senhoridade iniciática o privilégio de tomar conhecimento de aspectos mais reservados dos rituais do candomblé, a que se dá genericamente o nome de "segredos da seita".

Vários autores identificaram e comentaram a existência de textos litúrgicos que servem para preservar andamentos rituais mais críticos e especialmente aqueles que se realizam esporadicamente ou em circunstâncias especiais. Evidentemente que esses textos litúrgicos são referenciados quando se pretende analisar o problema da oralidade, ou melhor, da transmissão do saber através da tradição oral no interior dos candomblés.

Entretanto, o mérito maior é de Lisa Castilho que investigou em profundidade, no seu livro "Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia" (2008), como sacerdotes se valem da escrita e da oralidade no processo de transmissão do saber às no¬vas gerações de iniciados, sem esquecer da recorrência que fazem frequentemente aos documentos, como verdadeiro vade-mécum, isto é, livro de referência que os auxiliam no desempenho de de¬terminadas tarefas religiosas. O livro de Castilho, de certa maneira, desconstrói a idéia de uma religião até então concebida como es¬paço único de oralidade, embora a insistência de assim se pensar emana de outras intencionalidades que remetem principalmente ao problema do poder de mando e preciosismo dogmático.

No caderno que aqui noticiamos a que denominei em outro tra¬balho de “documento seminal", estão contidas lendas relativas ao aparecimento de orixás como forças responsáveis pela criação do mundo, suas naturezas míticas, suas funções como protetoras dos homens na terra; relatos sobre a história dos iorubás da Nigéria e sobre acontecimentos fantásticos; fábulas sobre pessoas e ani¬mais da fauna e flora africana e brasileira. Agrupados em capítulos [odus- caminhos) trazem igualmente ingredientes principais, que devem ser utilizados na elaboração dos ebós indicados, os quais devem ser prescritos aos consulentes ao fim de cada sessão divinatória com os búzios.

Esse conjunto de elementos mágico-religiosos está presente no já denominado "Sistema Bamboxê", certamente o mais complexo sis¬tema divinatório com os búzios de que se tem notícia e, como ve¬remos, está umbilicalmente relacionado com a família de Rodolfo Martins de Andrade, Bamboxê Obiticô, principalmente com seu neto de nome Felisberto Sowzer.

Na verdade, tudo leva a crer que o detentor inicial daquele material realizou trabalho cuidadoso de síntese e adaptação do saber oracular com o uso do Opelê ífá ao jogo de búzios. Em outro trabalho, quando tratamos das causas que motivaram o desaparecimento gradativo do babalaô no Brasil, isto é, do adivinho que se serve do Opelê Ifá para o exercício divinatório, assinalamos que é necessá¬rio um vasto e profundo conhecimento de muitas histórias, lendas, fábulas e mitos [ítarí] que se acomodam em cada odu (caminho/possibilidade de explicação e solução de problemas), os quais es¬tão na base desse processo de consulta oracular; e mais, que esse corpo de sabedoria está intrinsecamente ligado à história e à cul¬tura dos povos iorubanos. Ora, esses contos, lendas e mitos que se agrupam em cada odu e que são interpretados pelo adivinho em busca de respostas e soluções às questões formuladas por um de¬terminado consulente, não circulavam livremente. Esses elementos compõem o dito "caderno de fundamento", ciosamente guardado por um grupo privilegiado de líderes religiosos de que se dá notícia mais adiante.

Na prática divinatória operacionalizado sem o auxílio da escrita, e mais, aplicados num contexto brasileiro, grande parte do saber litúrgico desses fundamentos foi esquecida, resultando no apareci¬mento de variantes simplificadas agregadas, hoje em dia, ao conhe¬cimento que se tem da adivinhação pelo jogo de búzios.

Os portadores desse conhecimento que aqui aportaram na condi¬ção de escravos não encontraram no Brasil condições favoráveis ao pleno exercício de suas funções. A atividade do babalaô exige uma prática constante do saber divinatório para uma revitalização per¬manente dos conhecimentos aí envolvidos, o que é possível apenas dentro da dinâmica sócio-cultural da sociedade de onde são origi¬nários. Sabemos que a cultura africana, importada com o advento da escravidão, foi redefinida no Brasil ao entrar em contato com outras culturas também comprometidas com o processo civilizató-rio brasileiro. (...) A prática divinatória com o opelê Ifá exige recor¬rência permanente à memória coletiva de onde extrai o conteúdo necessário de realimentação, como o que se encontra implícito nas diversas histórias e contos ligados à cultura africana (BRAGA, 1988, p.33).

Ademais, para o exercício pleno da arte divinatória com o Opelê Ifá, os babalaôs necessitam de um número infinitamente maior de itans (versos), do que os que estão contidos no legendário caderno de fundamento.

Lisa Castilho realizou um trabalho extraordinário, seguindo as an¬danças desse caderno em busca da sua autoria.

0 manuscrito consiste em aproximadamente setenta contos, ver¬sões afro-brasileiras de ítan (versos) de Ifá, seguindo a divisão tradicional de odu (capítulos), cada um associado com um deter¬minado orixá. A adivinhação pelo Ifá é um aspecto do saber religioso muito raro nos terreiros hoje em dia, e este caderno constitui o único registro dela na tradição afro-brasileira [CASTILHO, 2008, p. 96) .

A autora lembra que, no início da década de 60, muitos desses contos foram publicados pela primeira vez nos dois livros de Deoscóredes M. Santos (Didi): Contos negros da Bahia (1961), Contos de nagô (1963), e, finalmente, Contos crioulos (1973), assinalando que as referências relativas à importância dessas histórias no processo divinatório foram excluídas, tais como os ingredientes para a preparação dos ebós, os nomes dos odus e suas relação com as 'caídas' dos búzios no espaço sagrado, onde se manipulam os elementos componenciais da adivinhação.

De certa maneira, quando publicamos o livro Contos afro-brasileiros, em 1980, seguimos os passos de Didi, separando os textos para publicação sem suas interações com os itans e a prática divinatória fazendo, vez por outra, alguma revisão ou alguns poucos reparos no texto para sua melhor compreensibilidade. Em nosso caso pessoal, o interesse foi o de divulgar um conjunto de mitos, lendas e histórias, para o conhecimento desse tipo de herança africana para além das porteiras dos candomblés. Usamos esse material integralmente na elaboração da nossa tese de doutorado, defendida em 1977 na Universidade Nacional do Zaire, sobre a prática e o significado do jogo de búzios. Posteriormente, o texto foi transformado em livro, publicado pela editora Brasiliense em 1988, com título O jogo de búzios, onde se encontra transcrita a totalidade daquele manuscrito. Ele me foi passado por Pierre Verger, aliás, cópia da cópia a que ele teve acesso por intermédio de Maria Bibiana do Espírito Santo, mãe Senhora do Opô Afonjá. Lembramos aqui que Pierre Verger já havia publicado, em 1957, no seu primeiro grande trabalho como pesquisador "Notes sur les cultes des orisa et Vodun" um mito sobre as andanças de Xangô.Trata-se, provavelmente, da publicação mais fiel ao texto original, pois foram guardados erros gramaticais e lexicais ali existentes. Ademais, Verger que na época ainda não dominava bem a língua portuguesa, principalmente a escrita, teve grande dificuldade de transcrevê-lo para efeito de publicação. Durante anos, ele jamais fez referência por escrito de que fora mãe Senhora quem lhe passara uma cópia, e não consta que tenha atribuído a autoria a quem quer que seja. Mas, em conversa pessoal afirmava que foi efetivamente Senhora quem lhe concedeu uma cópia do manuscrito, e sempre se referia a Agripina como a primeira a transcrevê-lo.

Em nosso texto, portanto, apenas reorganizamos o material de maneira a facilitar a compreensão pelo leitor do andamento divinatório . Sabendo que foi Verger quem passou uma cópia do manuscrito para Feuser, o texto em inglês Dílógun: brazilian tales of yorúbá divination discovered in Bahia by Pierre Verger é indiscutivelmente uma tradução do manuscrito, o mesmo que utilizamos em 1988.

Trata-se de um texto bilíngüe (português - inglês) com duas introduções, ambas em inglês. A primeira escrita por Feuser, intitulada "Yoruba tale from Brazil: an introduction", datada de junho de 1982, na qual o autor explicita como o manuscrito está organizado; contém 72 itans, (poemas) já afro-abrasileirados, e sua autoria é atribuída a Agripina, que o teria escrito em 1928. Esse autor não está certo quanto ao ano de 1928, interrogando se não teria sido em 1948, pois a cópia que dispunha não estava bastante legível, não lhe possibilitando definir com precisão o ano. Contudo, é bem provável que foi escrito efetivamente em 22 de junho de 1928.

“One such holy woman, or mãe-de-santo, named Agripina Souza, wrote down seventy-two Yoruba divination tales in Rio de Janeiro in 1928 - or was in 1948? Curiously enough, we are sure about the day and month 22ndjune, even the late evening hour when she rested her "SilverKey", with which she had unlocked the ancient secrets and "wound up writing these precepts odu", but not about theyear becau-seAgripina's hand-wiriting, being thatofa barely literate woman, is noteasily legible” (FEUSER, CUNHA, 1982, p. 7).

A segunda introdução é de Pierre Verger, também em inglês, intitulada A note on the original manuscript. Verger fala de Agripina e traça rápida biografia de Maria Bibiana do Espírito Santo, filha de Aninha, que se tornou nos anos 70 uma das mais famosas mães-de-santo do Brasil. Ali, Verger declara por escrito, pela primeira vez, que nos anos 50, seguramente antes de 1957, ele teve acesso ao manuscrito pelas mãos de Mãe Senhora.

“Aunt Agripina had been initiated into orisa worship in Bahia by the famous mãe de santo, Iyalorisa Aninha, Eugenia dos Santos to the profane, but to the initiates Sangobiyi, who was thefounder ofone the main terreiros de candomblé (shrines dedicated to the African Gods), known as Ase OpoAfonjá ofSão Gonçalo do Retiro with a bran-ch in Rio de Janeiro bearing the same name. Auntie Agripina lived in the terreiro atRio de Janeiro but the documents printed here, althou-gh written in that city are, in actualfact, Bahian traditions she had been taught by Mãe Aninha. They refer to the system ofdivination by sixteen caurie shells called eerindilogum. In the nineteen fifities, this exercise book was lent to me by Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo, Osunmuyiwa, who led likewise been initiated to orisa worship by Mãe Aninha and after her dead become the new iyalorisa of the terreiro” (FEUSER, CUNHA, 1982, p.8).

Mas a celeuma continua com a aparição de outra versão completa, publicada em 1998, por Agenor Rocha Miranda no livro Caminhos de Odu. De acordo com depoimento do velho Agenor (já falecido), "quem escreveu o manuscrito original foi ele, e Agripina apenas copiou" (CASTILHO, 2008, p.98).

Segundo Tia Irenea e filha de Felisberto Sowzer, Martiniano Eliseu do Bomfim, amigo de Felisberto, Benzinho, e personagem importante do mundo religioso afro-brasileiro, não somente se aproxima, mas também entra nessa história fascinante da biografia de um manuscrito, que é por si mesmo uma lenda, e tem papel preponderante na estruturação da prática da adivinhação através do jogo de búzios em muitos terreiros jêje-nagôs da Bahia. Mas, sobretudo, presta relevante serviço à fixação, pela tradição oral, de um corpus mínimo de informações sobre a cosmogonia iorubá, de que se vale grande parte de sacerdotes nas suas práticas religiosas nos dias atuais.

Levando em consideração a afirmativa de Iya Irenea de que Martiniano era amigo de Felisberto, e que se frequentavam e discutiam assuntos pertinentes à religião dos Orixás o que, aliás, contraria um segmento da tradição oral que assinala a inimizade entre ambos, o famoso colaborador de Nina Rodrigues certamente teve acesso ao famoso manuscrito. É bem provável que Martiniano tenha usado esse material quando passou a Edison Carneiro "notas" sobre um bastante conhecido mito relacionado aos ministros de Xangô, e constante do referido manuscrito. Acontece que a versão elaborada por Edison Carneiro, a partir das 'notas' que lhe foi passadas por Martiniano e publicadas sob o título Os ministros de Xangô, se aproxima em muito do texto original do famoso manuscrito, sobre tudo em partes essenciais do mito, como a traição que sofreu Xangô dos seus guerreiros, a divinização e a criação do conselho composto de doze ministros (mogbá) para valorizar o nome de Xangô sobre a terra. Tudo isto pode ser visto na cópia da cópia de Verger, por nós publicada com o título Ascensão de Xangô.

Está registrado na história que, na terra de Tapa, existia um mancebo que, como escravo, exercia a profissão de cortador de capim. Lá um dia morreu o rei de Osso, Alafim, ficando todas as famílias muito confusas e o país anarquizado. Não se sabia como resolver o problema de sucessão. Então, alguns dirigentes alvitraram a idéia de se preferir uma pessoa alheia ao sangue real. Assim, foi empossado por ato de uma resolução, o mancebo escravo por nome Xangô. Desde essa ocasião que muitas pessoas não ficaram satisfeitas com semelhante escolha. Aqueles generais e homens guerreiros que diziam terem prestado grandes serviços à nação, não serviam para este posto, como, então, colocar esse simples aventureiro Xangô?

De forma que Xangô, vendo-se sem prestígio para dirigir seus concidadãos, procurou, por todos os meios, a maneira melhor de dominar seu povo. Alguém lhe lembrou que mandasse procurar alguma coisa que servisse de admiração e que, ao mesmo tempo, o fizesse temido pelo povo. Assim fazendo, ele seria poderoso. Imediatamente. Xangô mandou uma das mulheres de sua confiança e fiel à terra Baribá fazer um trabalho mágico. Ela, ao retornar, botou um objeto na boca, de forma que, ao avistar Xangô, abriu a boca e foi botando fogo por ela, como prova de qualidade do objeto. Quando falava, saía fogo de sua boca; ela também fazia a mesma coisa, até que Xangô se zangou muito por ela estar tirando o valor do dito prodígio. Porém, os seus amigos advertiram que ele não caísse na asneira de expulsá-la de casa, pois seria uma grande desmoralização. Ela continuaria a fazer outras mágicas importantes. Assim, ele deveria ficar com ela junto de si, para tudo, na vida e na morte. Ele aceitou os conselhos dos amigos.

Um dos generais mais valentes que havia no reino, o de nome Gbaká, resolveu entrar um dia no palácio e ameaçou o rei Xangô. Disse que não tinha medo do fogo que Xangô costumava deitar pela boca afora, por mais do que aquilo, constantemente, fazia. E que, se ele quisesse, ordenasse uma luta numa praça pública, uma luta de morte - Temi Olofainã. Dito isso, Xangô aceitou a luta, julgando que assim estaria livre de quem lhe fazia receio. Começaram a lutar na hora marcada. Travaram a luta até que um ia matar o outro. O de nome Olofainã disse a Xangô que ele tratasse de se retirar do palácio, pois já estava deposto do reinado. Ditas essas palavras, tomado pelo pavor, Xangô saiu pelos fundos do palácio e foi aos arrabaldes da cidade, sozinho, sem ninguém, a não ser Oyá, sua fiel amiga que o aconselhou a enforcar-se, pois isso seria melhor do que passar semelhante vergonha. Para esse propósito, ela promoveu os meios imediatamente. Ela também desapareceu do mundo. Todas as pessoas que passavam viam o cadáver, até que os amigos lhe deram o necessário fim. Daí em diante, ninguém da amizade de Xangô podia respirar, pois logo era linchado em praça pública. Os amigos, então, resolveram mandar um representante na terra Baribá, para buscar qualquer coisa que fizesse retornar o respeito a Xangô, mesmo depois de morto. Assim, conseguiram arranjar um "trabalho" de Ossanhe que botaram nas casas, queimando-se, assim, a cidade. Ficaram todos confusos. 0 que é que deveriam fazer? Então, um desses partidários de Xangô anunciou que aquilo era castigo ao povo de Osso pelo que fizeram com Xangô, que ele subira ao céu e que tinha de fazer justiça a seus algozes. Diante disso, todos imploravam misericórdia. Foi nesse tempo que os doze ministros, seis para cada lado, constituíram-se em uma maçonaria cognominada Mogbá, que quer dizer defensor da coisa, para valorizar o nome de Xangô sobre a terra. "Dessa hora em diante, Xangô ficou sendo o santo mais aplaudido no território iorubá, até hoje" (BRAGA, 1988, p. 199-200).

É muito difícil supor que Martiniano não tivesse acesso a uma cópia do referido manuscrito, a considerar seu prestígio junto à mãe Aninha e, por extensão, junto a toda comunidade do Axé do Opô Afonjá. Se a avaliação estiver correta, Martiniano poderia, então, tê-lo usado, reelaborando o mito de Xangô com acréscimos de outros componentes míticos, que não são identificáveis no citado documento, sem, contudo, alterá-lo na sua essência. Caso contrário, Martiniano poderia conhecer outra versão mais elaborada pela via da tradição oral ou, então, poderia dispor de outro caderno ou anotações que foram repassadas "como notas" a Edison Carneiro.

De toda maneira, a organização do manuscrito não parece ter sido pensada para a transmissão da prática divinatória com o Opelê Ifá, tal como se pratica na Nigéria e no Benim. Antes, sugere um arranjo para possibilitar ao jogo de búzios a utilização de certas funções que são específicas da prática divinatória com o Opelê Ifá. Vale lembrar que, na tradução para o inglês, publicada na Nigéria, Feuser e Cunha tiveram o cuidado de usar no início do título a palavra Di-logum, conhecida na África quanto no Brasil, para falar do jogo de búzios, afastando qualquer referência à adivinhação por Ifá [Ifá divinatiori). Tal circunstância reforça a assertiva de que muitos dos seus elementos estruturais foram redefinidos e incorporados ao jogo de búzios, tornando-o eficaz quando da sua aplicação em busca de soluções para os problemas relacionados com a comunidade religiosa. Sobre esta simbiose entre as duas técnicas divinatórias, escrevemos:

A fusão desses elementos parece ter se iniciado bastante cedo. Os babalaôs, que conheciam as regras da prática divinatória com o opelê, normalmente recorriam ao jogo de búzios nas suas sessões cotidianas, reservando o opelê para consultas excepcionais, que exigissem uma sessão divinatória mais complexa. Assim, paulatinamente, elementos do jogo com o opelê foram se incorporando ao jogo de búzios ou foram reinterpretados dentro do sistema divinatório, tornando-o, este último, mais complexo e em condições de melhor servir às comunidades religiosas afro-brasileiras (BRAGA, 1988, p. 78-79).

Nesta linha de análise, é lícito supor que esta transferência de elementos de uma para outra técnica divinatória só poderia ser realizada por babalaô experiente, conhecedor da estrutura e mecânica operacional do jogo de Ifá. Isto nos remete à questão de saber quem efetivamente detinha o conhecimento litúrgico do jogo de Ifá e dele fazia uso como instrumento divinatório e, com competência, realizou a façanha de elaborar um sistema simplificado, adequando-o ao jogo de búzios que se tornou, por isso, mais complexo e em condições de atender, no plano oracular, as necessidades da comunidade religiosa. Aliás, questão que talvez nunca se tenha uma resposta definitiva, ainda que se possa conjecturar sobre nomes de pessoas ligadas à trajetória do importante manuscrito. É o caso, por exemplo, de Agenor Miranda, pai Agenor, como ficou conhecido um dos mais ilustres membros do candomblé. De acordo com Diógenes Rebou-ças Filho (1998, p. 13), organizador do livro Pai Agenor, ele nasceu em Luanda, Angola, em janeiro de 1907, foi iniciado no candomblé por Mãe Aninha, em 1912, aos cinco anos de idade como filho de Oxalá. Beniste contesta, com veemência, esta filiação religiosa, no capítulo intitulado 'Resumo', do seu livro Jogo de búzios: um encontro com o desconhecido.

Agenor Miranda Rocha, embora iniciado, se deteve na maior parte das vezes na função de responsável pelo jogo de búzios. Era filho-de-santo de Cipriano Abedé, iniciado em 1931. Quando Abedé faleceu, Agenor tinha menos de dois anos de feito, e tirou a mão no Gantois. Sua carreira de Oluwo é plena de significados, agindo com extrema competência na solução de disputas, sucessões e principalmente no auxilio aos muitos zeladores-de-santo que sempre o procuram para decisões de alta importância (BENISTE, 2008, p. 289].

Beniste se apoiou num depoimento que ele gravou em 9 de novembro de 1977, com uma senhora de nome Dila de Obaluaiê, filha-de-santo de Pai Abedé, e dele extraiu trechos nos quais a entrevistada garante que Pai Agenor era filho-de-santo de Pai Abedé, nome pelo qual ficou conhecido Cipriano Manuel.

Recolhi sozinha (1922), e do meu tempo já estavam lá Oyá Bumim, Maroca de Obaluwaiye, Paulina de Osun, Tudinha de Osala (...) depois de mim entrou um barco de cinco e depois entrou Santinho (Agenor) Agenor, eu acho, ele fez em 1931, porque Abedé morreu em 1933, e Santinho tinha feito no ano anterior (...) porque quando Santinho saiu do santo, após passar 1 ano, entrou um Barco com dois Osala (BENISTE, 2008, p. 280).

Entretanto, em nenhum momento Agenor se refere à Abedé como seu pai-de-santo, até porque ele sempre declarou publicamente que era filho de mãe Aninha, embora fale dele com entusiasmo, sem negar a importância que ele teve na sua formação religiosa dentro do candomblé.

Abedé veio da África para a Bahia nos fins do século passado e recebeu depois um axé de tia Júlia de Oxóssi, antecessora de tia Mas-si (Maximiniana Maria da Conceição) como mãe-de-santo da Casa Branca, para fundar um candomblé no Rio de Janeiro. A minha ami-zade com ele foi através de minha mãe Aninha, que era sua velha amiga (REBOUÇAS FILHO, 1998, p. 32).

Deoscóredes M. dos Santos, por sua vez, no prefácio do livro Pai Agenor, de Diógenes Rebouças Filho abona a filiação de Agenor com Aninha.

O prof. Agenor Miranda, desde seus oito meses de nascido, já estava designado para ser um grande representante da Religião Tradicional Afro-Brasileira, chamada popularmente de candomblé. Depois, passados alguns anos, foi iniciado no culto dos orixás pela memorável d. Eugênia Ana dos Santos, Mãe Aninha, com a ajuda de tia Pulquéria, tornando-se, com o passar do tempo, um importante babalaô, pai dos mistérios. Devido ao seu profundo conhecimento dos segredos do jogo de búzios, denominado erindilogum, passou a ser muito querido e respeitado por todos os que sabiam de sua existência (REBOUÇAS FILHO, 1998, p. 6).

No segundo parágrafo da citação acima, Deoscóredes se refere a Agenor como importante babalaô, pai dos mistérios, querendo certamente evidenciar suas inequívocas qualidades de grande conhecedor da religião dos orixás. Chamá-lo de babalaô não implica, necessariamente em afirmar que usava o Opelê Ifá, nem é razão suficiente também para negar ao falecido e pranteado Pai Agenor a condição de alguém capaz de manipular os instrumentos da refinada técnica da adivinhação por Ifá. É muito corrente a utilização do termo babalaô, aplicado às pessoas que detêm notório saber litúrgico e manipulam com competência a inteligência divinatória com os búzios - o jogo de búzios, dilogum ou erindilogum . Didi não faz nenhuma alusão ao jogo com o Opelê Ifá, reforçando, contudo, a fama e o prestígio que Agenor adquiriu ao longo do tempo, devido ao profundo conhecimento que tinha dos segredos dos búzios .

Enfim, Agenor já com mais de 90 anos garantiu que o manuscrito original é de sua autoria e que Agripina teria apenas copiado. Já está provado a impossibilidade de assim ter acontecido, segundo discussão alimentada por Lisa Castilho.

[...] Contudo, ao comparar o texto de Agenor com o de Agripina, observam-se também diferenças estilísticas que desqualificam a possibilidade de o caderno de Agripina ser copiado de um texto de autoria de Agenor. Filho de portugueses de classe média, Agenor era letrado e chegou a entrar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os traços do seu nível avançado de escolaridade são patentes na sua versão do texto, pela fluência narrativa na escolha das palavras e na organização das frases. Agripina foi criada num ambiente popular, com pouco acesso à escola, fatos que ficam também evidentes no seu texto, pela escolha de palavras, às vezes estranhas para um leitor letrado, e pela sintaxe das frases nem sempre claras. Tais características 'narrativas' dificilmente teriam sido introduzidas no processo de copiar um texto elaborado por Agenor. Muito mais possível é que Agenor, ao copiar o texto de Agripina, teria 'consertado' os seus 'erros' (CASTILHO, 2008, p. 98).

Enfim, se a afirmativa de Agenor for procedente, mesmo assim pouco ajudaria na elucidação de quem detinha o amplo conhecimento dos poemas de Ifá e sua aplicação na respectiva prática divinatória. A análise das características da narrativa feita por Lisa Castilho assegura que Agenor provavelmente teria copiado o texto de Agripina, e não como chegou a assegurar Agenor, de que Agripina teria copiado o seu texto original. Mesmo neste caso, o fato de ter eventualmente redigido o texto original não implica necessariamente que ele fosse o portador daquele saber divinatório, apesar da crônica do candomblé o tenha consagrado na condição de babalaô.

Embora já esteja consignado na memória coletiva do povo-de-san-to de que Agenor era filho-de-santo de Aninha, a versão de Beniste (2008, p. 287-288) se verdadeira, isto é, de que efetivamente Agenor fez santo com Pai Abedé por volta de 1931, oferece mais elementos que se integram (ou se intrigam) na discussão do famoso manuscrito. Por via de conseqüência, a aludida versão de Beniste afasta mais ainda pai Agenor da condição de titular do referido documento, como também da prática divinatória com o Opelê Ifá, sistema oracular a partir do qual foi redigido o referido documento. É ainda o próprio Beniste que, de certa maneira, alimenta a discussão quanto ao portador do saber que se encontra no manuscrito, ao qual teve acesso através de Cantulina Pacheco , mãe Cantu, Cantulina de Xangô Airá Tolá, filha de mãe Aninha, tema já consignado no livro de Lisa Castilho (2008, p. 99).

De acordo com as informações de Beniste (2008, p. 288), Cantulina nasceu na cidade do Salvador, no antigo bairro da Mouraria, em 16 de março de 1900, e foi iniciada por Eugênia Ana dos Santos, mãe Aninha, no dia 6 de junho del936, no Ilê Axé Opô Afonjá da Bahia. Faleceu em 27 de junho de 2004. Foi Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, em Coelho da Rocha, bairro do Município de São João de Meriti, no Rio de Janeiro, sucedendo sua irmã Agripina de Souza, Obá Deyí, na direção daquela importante comunidade religiosa. Voltando para a Bahia, residiu pouco tempo em casa de um parente, para logo depois se instalar definitivamente no Ilê Opô Afonjá onde viveu até seus últimos dias. Ocupou o prestigiado posto de lá Ebé (mãe da comunida-de), e nesta condição prestou inestimável serviço àquele terreiro. O referido cargo lhe foi dado por sua ialorixá, mãe Aninha. Cantulina Pacheco, mais conhecida por mãe Cantu, era neta de Joaquim Vieira da Silva, 'tio' Joaquim, Obá Sanyá, sobre quem falaremos quando tratarmos dos "Essas", líderes que muito ajudaram na edificação da religião afro-brasileira .

Beniste revela que, a partir de 1978, quando se aproximou do Axé do Opô Afonjá do Rio de Janeiro, Cantulina lhe mostrara velhos documentos, dentre eles um trabalho sobre o jogo de búzios com o significado dos odus, cuja origem remontava ao Axé Bamboxê.

Esse tratado revela o sistema de jogo de búzios elaborado de forma prática com as histórias de todos os caminhos, sem os complexos 256 odú de Ifá e fontes mitológicas africanas, estranhas à nossa cultura. Esta obra ora apresentada baseia-se nesse sistema cujas casas tradicionais do eixo Rio-Salvador adotam, e que nós denominamos de Sistema Bamgbósé, por ser deste Àse a origem do tratado (BENISTE, 2008, p. 13).

É evidente, como tivemos oportunidade de explicar em outra parte deste trabalho, que a intenção do escriba foi claramente a de formatar um documento que servisse de “vade mecum” para a prática do jogo de búzios, a partir da inclusão de elementos formais do jogo de Ifá. Ademais, a citação de Beniste remete para a possibilidade de se encontrar o autor desse tratado dentro da bem conhecida família Bamboxê, no que estamos inclinados a admitir como bem provável. Até porque se sabe que um dos netos de Rodolfo Martins Andrade, tio Bamboxê Obiticô, Felisberto Sowzer, conhecido por Benzinho de Ogum, Ogumtoxi, sempre foi considerado exímio babalaô pela comunidade religiosa afro-brasileira, com ressalva do alcance semântico do termo babalaô já suscitado em outra parte deste estudo. Bamboxê Obiticô é reverenciado no padê na qualidade de Êssau, por ter sido um dos que muito auxiliaram na implantação definitiva do terreiro da Casa Branca.

Na qualidade de membro de umas das mais importantes famílias negro-baianas, "a família Bamboxê", Benzinho pelo conhecimento que tinha do jogo de Ifá, bem poderia ter sido o autor intelectual do famoso manuscrito, oferecendo, assim, à posteridade um documento cujo conteúdo já se encontra atualmente integrado no mundo religioso afro-brasileiro, para além dos candomblés dito tradicionais, ao oferecer aos intelectuais, estudiosos e pesquisadores nacionais e estrangeiros importante material para as reelaborações literárias que se incorporam, paulatinamente, no vasto campo da literatura nacional.

Enfim, reforçando a possibilidade de identificação do autor do manuscrito dentro da família Bamboxê, uma das filhas de Felisberto Américo Sowzer, Iya Irenea, em entrevista a Lisa Castilho (2008, p. 99), garante que foi seu pai quem 'transpôs' aquele manuscrito, e aponta como evidência, a facilidade deste com a escrita e a facilidade de "jogar com odus" no Brasil. É evidente que o verbo 'transpor', conjugado no passado, pode ser entendido como "passado para" o papel, portanto, escrito. Em entrevista concedida ao autor deste texto, em 3 de junho de 2009, Iya Irene garantiu que foi seu pai, o babalaô Felisberto Sowzer, Benzinho quem organizou e redigiu, efetivamente, pela primeira vez o famoso documento em questão.

Em outros estudos sempre afirmamos que somente alguém, detentor do saber divinatório com Ifá poderia ter realizado a proeza de enriquecer o jogo com os 16 búzios com elementos importantes do jogo de Ifá, sem comprometer o sentido do segredo que envolve aquela tão complexa prática divinatória. Não somente detentor do saber divinatório, mas que fosse efetivamente um babalaô praticante desta difícil arte oracular, para que a transposição de elementos de uma para outra prática se fizesse de modo a tornar o jogo de búzios suficientemente eficaz, de que se vale o líder religioso na sua intermediação entre o mundo sagrado e profano.

Ora, de acordo com Iya Irenea, seu pai que usava o Rosário de Ifá, foi ò autor desta façanha; porém, sua intenção não era a de tornar público este manuscrito. Iya Irenea nos assegurou que ele cedeu uma cópia deste caderno para uma sua filha-de-santo de nome Judite de Iansã, como parte de sua preparação para o sacerdócio, e assim agiu porque não podia ensinar o jogo de Ifá para uma mulher. Iya Irenea aponta Judite como a responsável de fazer circular este manuscrito pelas mãos de algumas pessoas do candomblé. Em outra entrevista no dia 9 de junho de 2009, perguntamos-lhe se ainda existia o original do manuscrito, ela disse que não, e explicou: "Quando papai morreu em 1940, foi feito o axexê e o manuscrito foi no 'carrego' ". Contudo, o seu irmão Crispim, sabendo que isto ia acontecer, cuidou de fazer uma cópia, e para isso passou uma noite inteira transcrevendo o manuscrito, antes que se procedesse ao seguimento do ritual do axexê, que consiste em selecionar, através da consulta oracular, os pertences e outros objetos sagrados que acompanharão o falecido, os que serão quebrados, e os que serão distribuídos entre os parentes.

Cabe aqui explicar que axexê é o nome pelo qual se denominam nos terreiros jêje-nagôs da Bahia as honras funerárias tributadas àqueles que se submeteram, quando em vida, aos diferentes rituais iniciáticos, tiveram importantes responsabilidades religiosas e desempenharam relevantes papéis dentro do grupo religioso. 0 axexê tem durações diferenciadas, a depender do estágio de iniciação e dos títulos que detinha o homenageado nessas exéquias. Pode ocorrer imediatamente após o falecimento da pessoa, e os rituais se sucederão, após um mês, um ano, quatorze, até vinte e um anos depois, em função da importância do falecido e da tradição interna de um determinado terreiro de candomblé. Para um membro que faleceu e não tinha muito tempo de iniciado, menos de três anos, por exemplo, a cerimônia funerária poderá ser realizada de forma menos espetacular, reduzindo-se, quase sempre, a uma 'obrigação', a que se dá o nome geralmente de 'carrego', mas nem por isso menos importante na sua intenção final. No caso de um líder religioso de um terreiro, a cerimônia do axexê é realizada na sua complexidade maior, em etapas sucessivas, até se completar o ciclo após o qual o candomblé volta à sua vida cotidiana normal. 0 axexê é, essencialmente, uma cerimônia religiosa de profunda importância na noção de continuidade perene do grupo que venera seus mortos ilustres, sustentáculos ancestrais de um determinado terreiro. Na verdade, mais do que um culto à morte, o axexê, como fim e princípio de tudo, é uma excepcional louvação e exaltação à vida, na sua forma mais sublime, transcendental e coletivizada. 0 axexê sempre se inicia no ilê ibó iku, espaço consagrado ao culto dos mortos ilustres da casa, ou em local adredemente preparado para tal cerimônia.

Portanto, foi durante a cerimônia de axexê tributada a Felisberto Sowzer, que a família Bamboxê conseguiu preservar uma cópia do referido original por ele elaborado. Entretanto, é bem certo que cópias desse manuscrito já circulassem discretamente no circuito fechado dos candomblés muito antes do falecimento do pai de Irenea. Mas sempre guardado com muito recato por aqueles que a ele tiveram acesso, pois se tratava de documento de valor inestimável por conter informações viscerais do pensamento teológico e da ideologia nagô, que sofria ali pontual ressignificação para ajustar-se à demanda do universo religioso afro-brasileiro. Vale ainda lembrar que Judite fez sua iniciação muito antes de Felisberto morrer, em 17 de abril de 1940. E, nesse sentido, sem apologia às atitudes pouco recomendáveis para quem pretende preservar o segredo no contexto religioso dos candomblés, a indiscrição no trâmite desse manuscrito do seu autor primeiro para outros, quaisquer que tenham sido as motivações para adquiri-lo, resultou numa formidável contribuição na preservação de um inestimável conteúdo sagrado.

Em nenhum momento nos meus escritos minimizei a importância da oralidade como instrumento de preservação e transmissão do saber iniciático. Mas sempre asseverei que ao lado dessa oralidade, acham-se os pequenos cadernos contendo anotações essenciais sobre rituais mais complexos, mais episódicos, uma informação complementar de um dado da tradição oral, ou então a descrição de andamentos litúrgicos.

No livro "Na gamela do feitiço", examinei um processo judicial instaurado, em 1939, contra o cidadão Nelson José do Nascimento, acusado de práticas de feitiçaria e falsa medicina quando, na verdade, tratava-se apenas de sacerdote da religião afro-brasileira. Na busca e apreensão de bens que poderiam culpabilizá-lo foram encontrados cadernos contendo orações provavelmente ligadas à sua religião, e que foi peça dos autos. Ao tratar deste assunto, argüi que "é muito comum, especialmente nos dias atuais, líderes sacerdotais possuírem cadernos de anotações, guardados com muito carinho e desvelo para que não sejam furtados, copiados ou manipulados por quem não merece a confiança de seu proprietário".

No prefácio ao meu livro, "Contos afro-brasileiros", publicado em 1980, falando de como foram preservados os mitos africanos no contexto religioso dos candomblés e como foram reinterpretados e ajustados às novas motivações socioculturais, chamei atenção para o fato de que:

[...] embora toda transmissão do legado cultural africano às novas gerações seja essencialmente oral, não falta, entretanto, a documentação escrita retida em cadernos amarelados pelo tempo e que são cuidadosamente guardados por seus proprietários. Essas anotações, às vezes conseguidas com grandes dificuldades, ajudam no processo de memorização dos mitos e rituais, especialmente daqueles de que se vale menos freqüentemente o povo-de-santo. A transmissão (pela) escrita, com a passagem mão-à-mão dessas anotações, produz um verdadeiro circuito informativo de pessoa-a-pessoa, pois quem assim procede exige, quase sempre, outras informações em recompensa às que foram transmitidas. (BRAGA, 1980,p.8)

Contudo, se anotados, copiados, xerocados, por outros iniciados, repete-se a preocupação para que deles ninguém tome posse. Mas a sede de saber transforma sisudos senhores, e amados e respeitados filhos-de-santo, em espertos larápios capazes de arquitetar amiúde, toda a estratégia de obtenção desses preciosos documentos. Mas as pessoas mais íntimas e, sobretudo, as que estão mais próximas do líder religioso por razões hierárquicas, ou por outra razão qualquer, geralmente dividem com ele o privilégio do acesso a essas anotações, cuidando todos para que não cheguem ao domínio público. Entretanto, esses cadernos terminam por circular por várias mãos e, assim, vão cumprindo seu papel de coadjuvantes da transmissão da tradição pela oralidade, subvencionando esta última.

A preocupação pela permanência da oralidade como veículo único de manipulação do saber iniciático, parece vir de fora para dentro, no sentido de que, para o povo-de-santo, qualquer recurso é válido para ampliar o conhecimento do universo mágico-religioso, mesmo que se manifestem contrariamente a tais atitudes. No livro "Na gamela do feitiço", refiro-me a alguns estudiosos, em especial os que assumem algum tipo de relação formal e permanente com o grupo religioso, que tendem a minimizar importância dessas anotações, desses cadernos, para enfatizar tão somente a natureza da oralidade como meio único da transmissão do saber iniciático. Mas evidente que "a tradição ainda exige a oralidade para a transmissão do saber litúrgico e sua efetiva memorização. Esta situação está cada vez mais restrita ao conjunto de conhecimentos, geralmente denominado "fundamentos da seita", e que são transmitidos aos neófitos durante o período de reclusão conventual. Caso alguém ousasse revelar a utilização desse material escrito correria o risco de cair no descrédito do povo-de-santo ou de líderes religiosos que igualmente se valem dessas informações preciosas, muitas vezes anotadas por eles próprios ou com auxílio de um filho-de-santo mais íntimo, mais discreto e com razoável grau de alfabetização".

E concluo aquelas observações que aqui se encaixam perfeitamente como resposta mais analítica à questão da oralidade e de sua eficácia no contexto dos candomblés, nos seguintes termos:

A existência e eventual utilização de anotações, sobretudo de rituais mais episódicos do calendário litúrgico, remetem a preocupação para uma discussão emergente das condições reais da continuidade da tradição no contexto atual da sociedade brasileira, tema que não cabe nos limites deste trabalho. É bom frisar que o cuidado de anotar como desenrolam certas cerimônias mais episódicas, insere-se na intenção maior de se guardar uma liturgia cada vez mais submetida às pressões das mudanças sociais às quais os candomblés estão diretamente submetidos. É uma forma de resistência ao processo de alterações mais rápidas do conteúdo simbólico que alimenta e dá sentido à religião afro-brasileira. Mas essas anotações são também instrumentos importantes da consolidação do prestígio e do poder de mando no interior dos candomblés. (BRAGA, 1980)

A pedagogia da transmissão do saber pela oralidade será sempre reclamada nos terreiros de candomblé como apanágio do respeito e observação da tradição, especialmente quando estiverem em jogo rituais mais críticos e mais restritos, como, por exemplo, os cânticos de axexê, padê e feitura de santo. Entretanto, grande parcela desses arautos da tradicionalidade guarda carinhosamente e com muito recato os já famosos cadernos de fundamento, prenhes de preciosas informações, que a qualquer momento podem ser consultados; cadernos organizados quando não pelo líder religioso, mas por pessoa de sua absoluta confiança, com capacidade de emprestar a esses documentos características especiais e, não raro, com algum desenho decorativo ou elaborado para explicação visual de algum andamento ritual. Vale lembrar que esse tipo de redação já era bastante usual em tempos idos em que a transmissão do saber pela via expressa da oralidade se constituía em recurso de maior utilização. O manuscrito aqui analisado é bem um exemplo do uso da escrita como recurso de que já se valiam velhos lideres religiosos. Num sentido amplo, a excessiva propagação do uso da oralidade em todos os tempos deixa de ser apenas uma valiosa recomendação pedagógica para se transmudar em texto de outra semântica, movida provavelmente pelo anseio de fortalecer indicativos que remetem à noção de qualidade excepcional de defectível refinamento, excepcionalidade e prestígio.

Relatos sobre Bámgbósé

Em seu livro Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns (editora Edusp, 1999), Pierre Verger descreve uma fantástica história a respeito de Bámgbósé Obítikó, narrada a ele por antigos iniciados no Candomblé. Quando dizemos "fantástica", não estamos retirando o status de verdade da história em questão. Muito pelo contrário: os iniciados no culto a Orixá se acostumam desde cedo a presenciarem proesas. Queremos nos referir à natureza admirável dos velhos nagôs aos narrarem as histórias.

Segundo a descrição de Verger:

Bamgbose O(wo)bitiko mandava pilar um galo, colocada no chão a massa obtida, e a cobria com um cesto emborcado e um pano vermelho. Dançava em cima, agitando seu sére e, quando erguia o cesto, o galo saía de baixo, vivo, e cantando cocoricô.

Certo dia, em sua casa nada havia, além de um obi e um orogbo. Ele os cortou em pedacinhos e, em seguida, distribuiu-os entre os que estavam presentes. Colocou um pedaço de cada um deles em um recipiente, que pendurou na parede, cobrindo-o com um pano vermelho. Cantou, agitou seu sére e, quando pegou o recipiente, este estava repleto de obi, orogbo e folhas verdes de cajazeira.

Relatos como estes demonstram tanto o poder quanto o fascínio exercido pelo ancestral da Família Bámgbósé sobre todos os iniciados no Culto a Orixá.

Àse Kawô Kabiyesí Le!

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